03 Janeiro 2011
Parece que a mais entusiasta foi a senhora Svetlana Medvedeva, primeira-dama da Rússia, que havia presenciado uma missa propiciatória do Patriarca Kirill em uma igreja de São Petersburgo, usada por anos como círculo dos oficiais da Marinha soviéticos. E certamente o primeiro-ministro Vladimir Putin terá beijado, como diz fazer todas as manhãs, o inseparável crucifixo de ouro, doado pela mãe, que usa sempre por baixo da camisa.
A reportagem é de Nicola Lombardozzi, publicada no jornal La Repubblica, 20-12-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A grande promessa do primeiro-ministro e da coligação no poder foi mantida: uma lei, aprovada pela Duma [Assembleia Nacional da Rússia] com o único "não" dos comunistas devolveu à Igreja Ortodoxa o imenso patrimônio confiscado com violência e sem escrúpulos pelo regime soviético. Uma comissão especial já está começando a se ocupar da restituição dos bens. Trata-se de 1.600 igrejas e edifícios diversos espalhados pelo país e um tesouro ainda a ser inventariado de objetos sacros e ícones conservados nos mais prestigiados museus de Moscou e de São Petersburgo. Uma vitória histórica para a Igreja russa, que saiu da clandestinidade há apenas 20 anos, quando a decisão de Gorbachev de restituir aos cidadãos a liberdade de pensamento e de culto fez a volta ao mundo e deu mais um sinal do fim iminente da URSS.
Mas os dias da festa e da comoção sincera de milhões de fiéis, das lágrimas derramadas durante a primeira cerimônia na catedral de São Basílio, estão distantes. A restituição de um só golpe dos bens de enorme valor saqueados ao longo dos anos aos fiéis de todas as religiões cria inevitavelmente dificuldades técnicas, reivindicações e ciúmes. E, em um país dominado por mais de 70 anos pelo laicismo de Estado principalmente, a brusca conversão do governo e dos seus homens mais representativos levanta polêmicas e suspeitas sobre uma fácil busca de consenso. Ou até sobre uma verdadeira santa aliança com a Igreja Ortodoxa, que deseja manter a supremacia ideológica e patrimonial sobre outras Igrejas.
O caso mais surpreendente ocorreu no ex-território-chave de Kaliningrad, a ex-Konigsberg, pátria de Kant, onde uma doação antecipada da administração local também "restituiu" aos ortodoxos uma igreja católica que era sede da orquestra filarmônica da cidade. Junto com o protesto dos músicos expulsos, também se levantou o protesto da minoria católica, liderada pelos mais idosos que ainda se lembram da brutalidade da expropriação e das missas clandestinas celebradas por corajosos sacerdotes, perseguidos pelos agentes do KGB.
Mais articuladas, e nem sempre límpidas, são as objeções técnicas. Em 1922, no meio da carestia e da revolta dos kulaks, quando Lênin ordenou que se "expropriasse os bens da Igreja com a mais brutal e selvagem energia", mosteiros, institutos piedosos e várias propriedades eclesiásticas foram destruídos ou reconvertidos. Muitos se tornaram museus, outros hospitais, escolas, salas de concerto. "Levá-los de volta à sua destinação originária privaria o Estado de estruturas fundamentais e não imediatamente substituíveis", diz, por exemplo, um documento da Câmara Civil russa, que se opunha à lei.
Ainda mais forte é o protesto dos diretores dos museus presididos pelo responsável da Ermitagem de São Petersburgo, que apelaram à Medvedev na vã tentativa de frear o procedimento. "As coleções de arte eclesiástica russa reunidas nos museus representam um extrato da cultura ortodoxa que inevitavelmente perderá impacto, fracionando-se nas tantas igrejas da Rússia", escreveram em uma carta aberta ao Kremlin. E insinuam também uma outra dúvida: "As igrejas da Rússia não são capazes de preservar fragilíssimos tesouros de arte que seriam destinados à destruição por inadequação dos sistemas de conservação e de restauro".
Mas não há nada a fazer. A lei já está em vigor, apesar das polêmicas e dos resmungos. A reviravolta, desejada com força por Vladimir Putin, parece já ter alcançado o seu ponto de não retorno. É uma reviravolta feita com coisas, mas também com símbolos. Há muito tempo, o ex-agente do KGB que lidera a Rússia ostenta sempre mais uma fé que, por anos, deve ter evidentemente mantido em segredo, sendo surpreendido por tropas televisivas bem informadas, enquanto reza em solidão em alguma igrejinha do interior.
A sintonia de pensamento com o patriarca Kirill fez o resto. A intervenção de Putin fez com que se bloqueasse, no ano passado, a abolição da palavra "Deus" na versão pós-soviética do hino nacional. O primeiro-ministro sempre lutou pelo retorno da hora de religião nas escolas elementares, pelas modificações na constituição para limitar os direitos das comunidades evangélicas, tão indigestas aos ortodoxos. E agora olha com benévola condescendência à proposta do Patriarca de pedir que as leis em discussão na Duma sejam primeiro lidas e comentadas pela Igreja Ortodoxa. Parecer só consultivo, obviamente, mas que representaria o passo decisivo rumo ao sonho nem tão escondido do Patriarca: transformar a sua Igreja em uma Igreja de Estado.
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A "Santa Aliança" entre Putin e o Patriarca - Instituto Humanitas Unisinos - IHU